Tem dias em que a gente sente inveja de um pé de alface.
Sente inveja do cabelo do ralo, da poeira, inveja de tudo o
que não precisa ser.
Tem dias em que a gente quer tecer com a dor um casulo e só
sair quando puder voar. Dias em que se está cansado de
rastejar.
Tem dias em que a gente só quer que a cabeça vire uma bexiga
azul, para desamarrar a ponta e sentir esvaziar, murchar,
até ser esquecida e varrida no chão da festa.
Tem dias em que a gente é vagão que descarrila. Peça solta
de um brinquedo de pilha. Espécie banida da arca a esperar
pelo dilúvio.
Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu no
topo de uma roda gigante veloz e iluminada que é a cidade.
Dias em que as lágrimas só escorrem para dentro e se alojam
em algum lugar entre a garganta e o estômago, se aglomeram
formando um órgão dolorido e pulsante como um segundo
coração.
Dias em que não se estanca os pensamentos e as dúvidas vão
sangrando pelos poros a cada arrepio de frio.
Dias em que não se sabe se esse barulho ensurdecedor vem de
dentro ou vem de fora. Se esse silêncio triste vem de dentro
ou vem de fora. Se essa melodia insistente é memória ou
surgiu agora para fazer trilha ao seu quieto desespero.
Se essa palavra impronunciável é a chave do teu mais íntimo
e decisivo mistério.
Dias em que o vento do fim da tarde arranca toda a pele do
corpo e de repente a gente é isso, carne, músculo, nervos
expostos às variações do tempo, do clima; a ferida exposta
do que a gente é.
Tem dias em que a vida é como uma fruta bonita e suculenta
que a gente morde e descobre que tem um bicho dentro. Dias
em que a gente é essa fruta bichada e sente alguém devorando
e sorvendo nossa polpa escassa. Dias em que a gente é esse
bicho desprezível e invasor triturado por uma boca enganada
e sedenta.
Tem dias em que a criança que a gente foi se desespera
quando nos vê através do espelho.
Dias em que diante do espelho cresce inteiro um fio de
cabelo branco e se abre no rosto uma ruga profunda que é, na
verdade, a cicatriz tardia de alguma ferida passada.
Dias em que o nosso mais puro ateísmo reza. A nossa fé mais
cega descrê. E a gente cai nesse vão.
Dias em que a solidão é um lugar, nosso nome é um verbo numa
língua morta, e o dia é pago com a própria vida.
A noite não chega nunca, nem nunca vai embora.
Mas, tão imprevisível quanto aguardado, chega o instante
inesperado em que grita dentro da gente um desejo invencível
de porvir: os olhos abrem num susto. Pega-se a faca debaixo
do travesseiro e, sim, rasga-se o véu turvo que cobria o
esplendor da manhã.
Uma fresta de luz invade o quarto e, insones, pupilas
enormes, os olhos a contemplam como se fosse o primeiro
sinal de vida sobre a terra.
Navegando por ele, a gente amanhece com a aurora - sem
recordar o dia que passou, sem desconfiar dos próximos dias
duros que virão, só porque dentro daquela estreita faixa
iluminada não importam os dias que já foram, nem os que hão
de vir, não importam os dias.
E teve este dia, em que a única coisa que eu pude pensar
em publicar foi o texto poético acima, caótico, esplêndido,
que traduz com tanta precisão alguns dos nossos dias: na
coluna de hoje, Isabela Penov, com meus aplausos de pé!