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Letras | Cristina Lebre | Edição 171

Quem somos, afinal?

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Quem somos, afinal?  Peregrinos, forasteiros, romeiros em terras estranhas?  Pois se insistimos em ser arte onde a arte nada vale, o que importa são cifrões na conta bancária e raras poltronas para sentar?  Pois se cultura é besteira, coisa de efeminados, e anunciar poesia então, que dizer de tanta asneira?  Pois se hoje é feriado, e as estradas estão cheias de carros a caminho das praias, mas nós escolhemos ficar, preferimos ler poesia em bares vazios e salas abertas para não mais que ratos e raros seres indefinidos escutarem?
Ora, quem mandou nascer em país jovem, em cujas lideranças políticas ainda habita a imatura sede de um poder que corrompe valores, esgarça a honestidade, dilacera a original vontade de fazer o bem a toda uma população, que desperta a cada dia na mesma espera por milagres?  E ainda por cima nascer artista, abrir braços como asas de pássaros livres, soltar a voz feito cantores de ópera aclamados, declamando poesia pra todo aquele que passa com a pressa agressiva de defender seus trocados!

Insistimos em cantar, esculpir, pintar, escrever, fotografar, retratar, mesmo que seja neste cenário estéril, aridez de humildade, sensibilidade rarefeita, caminhos depauperados pela ausência de estímulo à cultura de um povo, mas abertos à agiotagem, o dinheiro à sua lavagem, as crianças sem merenda, adultos sem emprego, nação carente de educação, saúde, cultura, acesso, liberdade!
E nós permanecemos nesta sala de lustres de cristal, onde até agora há energia elétrica e a nossa, que é muito mais intensa, e o nosso desejo de anunciar, mesmo que à espreita, a novidade linda de que a arte não morre, ainda que pisoteada, massacrada, desprezada... E a gente continua vivente nesta terra de corações duros, que cantam estribilhos de sacanagem, e se arvoram a afirmar que a cultura de um povo é somente a sua alegria, confraria de pobres viciados em drogas e malandragem...
Nosso palco é feito de barro, nossa estrada inundada do pó que se espalha a cada dia de sol carrasco.  Nossas luzes escusas, esfumaçadas, e nós, silhuetas de corpos ardentes no tempo que nos consome como unguentos passados, vencidos, amargos... nossas vozes uníssonas se abrem num canto que parece se diluir no ar poluído de gases libertos por milhões de nervosos veículos apressados.. e mesmo assim resistimos...

Pois se eles não valorizam médicos, quiçá professores, se somente dependemos da boa vontade de Deus em nos livrar, a cada dia, da morte sorrateira que nos ronda desde a alvorada, o que dizer de artistas? Gente que nada faz de importante, gente que fede ao mofo de palavras cansadas de tanto bradarem as mesmas bobagens sobre a vida, dos miseráveis, rotineira... gente que ronda os becos negros das madrugadas, a brindar a livros e poesias, a museus e salas de cinema, tantas delas destruídas para a construção de mais arranha-céus, viadutos, pontes em cujos pilares se protegem do frio hordas da escória que os poderosos desafiam a morrer, a cada hora, por não servirem para nada a se querer...

 Ainda assim somos capazes de recitar em campos minados, em lixões de grandes cidades, em meio a fezes frescas atiradas por covardes em seus catadores, aos abutres que dividem com enjeitados a refeição apodrecida de famílias abastadas...e persuadi-los a cantar conosco uma canção de esperança, em meio à vida que segue, e “nada como um dia após o outro”, na tão fatigante jornada...
Materialidade, maternidade e maturidade fizeram-me poeta.  Para poetizar a tristeza, a saudade, os ventos, os céus cinzentos, as plantas, os pássaros, o amor, a injustiça, a fome, a grandeza!  Pois de quê me servem as mãos e a mente que não sejam para tecer palavras, e grudá-las umas às outras para formar com elas frases e versos que bradem às têmporas dos mais exaustos, suados, maltrapilhos... e incomodem os abonados, os ditos influentes, importantes, na realidade todos, à beira da cova, igualmente putrefatos...

Artistas por aqui, sim!  Pois somos sobreviventes em um mundo que vocifera a maldade, o hedonismo, a imponência...pois comentamos em um só dia a foto do menino que foi dar na praia, morto, esquecido pelo globo que tranca suas portas de ouro aos desgraçados, quem mandou serem necessitados... somente o mar os abraça e os acolhe, e pelas ondas chegam às areias, desta vida insensível, descansados...

Poetas que anunciam paz e confiança, sim!  Pois para quê servimos senão para tentar quebrar rijas cervizes, aquecer corações frios, anunciar a fascinante novidade...de que a vida não acaba neste caminho sem volta, mas continua atravessando o firmamento e a gente aqui casa as sentenças para afirmar tudo isso em voraz linguagem, e não importa  o país, a pátria em que nascemos, pois sabemos que o mundo inteiro necessita de coragem... arte, sim, ad aeternum, vem vindo sobre nós a realidade, que tão somente um dia foi miragem!


 
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