Quem somos, afinal? Peregrinos, forasteiros, romeiros em
terras estranhas? Pois se insistimos em ser arte onde a
arte nada vale, o que importa são cifrões na conta bancária
e raras poltronas para sentar? Pois se cultura é besteira,
coisa de efeminados, e anunciar poesia então, que dizer de
tanta asneira? Pois se hoje é feriado, e as estradas estão
cheias de carros a caminho das praias, mas nós escolhemos
ficar, preferimos ler poesia em bares vazios e salas abertas
para não mais que ratos e raros seres indefinidos escutarem?
Ora, quem mandou nascer em país jovem, em cujas lideranças
políticas ainda habita a imatura sede de um poder que
corrompe valores, esgarça a honestidade, dilacera a original
vontade de fazer o bem a toda uma população, que desperta a
cada dia na mesma espera por milagres? E ainda por cima
nascer artista, abrir braços como asas de pássaros livres,
soltar a voz feito cantores de ópera aclamados, declamando
poesia pra todo aquele que passa com a pressa agressiva de
defender seus trocados!
Insistimos em cantar, esculpir, pintar, escrever,
fotografar, retratar, mesmo que seja neste cenário estéril,
aridez de humildade, sensibilidade rarefeita, caminhos
depauperados pela ausência de estímulo à cultura de um povo,
mas abertos à agiotagem, o dinheiro à sua lavagem, as
crianças sem merenda, adultos sem emprego, nação carente de
educação, saúde, cultura, acesso, liberdade!
E nós permanecemos nesta sala de lustres de cristal, onde
até agora há energia elétrica e a nossa, que é muito mais
intensa, e o nosso desejo de anunciar, mesmo que à espreita,
a novidade linda de que a arte não morre, ainda que
pisoteada, massacrada, desprezada... E a gente continua
vivente nesta terra de corações duros, que cantam
estribilhos de sacanagem, e se arvoram a afirmar que a
cultura de um povo é somente a sua alegria, confraria de
pobres viciados em drogas e malandragem...
Nosso palco é feito de barro, nossa estrada inundada do pó
que se espalha a cada dia de sol carrasco. Nossas luzes
escusas, esfumaçadas, e nós, silhuetas de corpos ardentes no
tempo que nos consome como unguentos passados, vencidos,
amargos... nossas vozes uníssonas se abrem num canto que
parece se diluir no ar poluído de gases libertos por milhões
de nervosos veículos apressados.. e mesmo assim
resistimos...
Pois se eles não valorizam médicos, quiçá professores, se
somente dependemos da boa vontade de Deus em nos livrar, a
cada dia, da morte sorrateira que nos ronda desde a
alvorada, o que dizer de artistas? Gente que nada faz de
importante, gente que fede ao mofo de palavras cansadas de
tanto bradarem as mesmas bobagens sobre a vida, dos
miseráveis, rotineira... gente que ronda os becos negros das
madrugadas, a brindar a livros e poesias, a museus e salas
de cinema, tantas delas destruídas para a construção de mais
arranha-céus, viadutos, pontes em cujos pilares se protegem
do frio hordas da escória que os poderosos desafiam a
morrer, a cada hora, por não servirem para nada a se
querer...
Ainda assim somos capazes de recitar em campos minados, em
lixões de grandes cidades, em meio a fezes frescas atiradas
por covardes em seus catadores, aos abutres que dividem com
enjeitados a refeição apodrecida de famílias abastadas...e
persuadi-los a cantar conosco uma canção de esperança, em
meio à vida que segue, e “nada como um dia após o outro”, na
tão fatigante jornada...
Materialidade, maternidade e maturidade fizeram-me poeta.
Para poetizar a tristeza, a saudade, os ventos, os céus
cinzentos, as plantas, os pássaros, o amor, a injustiça, a
fome, a grandeza! Pois de quê me servem as mãos e a mente
que não sejam para tecer palavras, e grudá-las umas às
outras para formar com elas frases e versos que bradem às
têmporas dos mais exaustos, suados, maltrapilhos... e
incomodem os abonados, os ditos influentes, importantes, na
realidade todos, à beira da cova, igualmente putrefatos...
Artistas por aqui, sim! Pois somos sobreviventes em um
mundo que vocifera a maldade, o hedonismo, a
imponência...pois comentamos em um só dia a foto do menino
que foi dar na praia, morto, esquecido pelo globo que tranca
suas portas de ouro aos desgraçados, quem mandou serem
necessitados... somente o mar os abraça e os acolhe, e pelas
ondas chegam às areias, desta vida insensível,
descansados...
Poetas que anunciam paz e confiança, sim! Pois para quê
servimos senão para tentar quebrar rijas cervizes, aquecer
corações frios, anunciar a fascinante novidade...de que a
vida não acaba neste caminho sem volta, mas continua
atravessando o firmamento e a gente aqui casa as sentenças
para afirmar tudo isso em voraz linguagem, e não importa o
país, a pátria em que nascemos, pois sabemos que o mundo
inteiro necessita de coragem... arte, sim, ad aeternum, vem
vindo sobre nós a realidade, que tão somente um dia foi
miragem!