Não há dúvida alguma de que François Truffaut (1932-1984)
era um gênio e deixou nesse planetinha suburbano, moralista
e cafajeste uma montanha de obras primas, entre elas “O
Homem que Amava as Mulheres”, filme de 1977.
O filme conta a história de Bertrand Morane, um cara de meia
idade que tem obsessão por mulheres. No entanto, confirmando
a tese de que os canalhas não sofrem, Bertrand conquista,
conquista, conquista compulsivamente mas vive afogado num
oceano de sofreguidão, angústia, culpa e solidão.
Bertrand é interpretado pelo polonês Charles Denner, morto
em 1995 com apenas 67 anos. Truffaut nos deixou com apenas
52. Denner trabalha muito em “O Homem que Amava as Mulheres”
e não foi à toa que ao longo de 30 anos foi requisitado
também por Louis Malle, Claude Chabrol, Jean-Luc Godard,
Costa-Gavras, Claude Lelouch
Capaz de atirar de propósito o carro num poste e andar 300
quilômetros para conquistar uma mulher, Bertrand é neurótico
radical sim, mas traz os traços muito comuns nos homens de
meia idade que vivem saudavelmente, nadando contra as
correntes da sociedade calhorda, babaca e inútil que formam
as classes média e rica. Os pobres? São muito mais livres,
basta olhar.
Um dia desses vi uma malabarista de uns 20 e poucos anos num
sinal de trânsito, batizado por São Paulo de semáforo.
Shortinho enterrado, braços levemente tatuados, pearcing no
nariz, em troca de uns trocados dos motoristas ela jogava
três bastões de fogo para cima, para baixo, entre as
virilhas e os manipulava com a intimidade das cortesãs do
século XX manuseando um robusto bacamarte.
Se Bertrand Morane estivesse ali daria um jeito de conseguir
nome, telefone, endereço, CPF da malabarista, ia caçá-la,
abatê-la para depois ser mais uma vez acachapado pela
ansiedade infinita dos infelizes e seus teoremas
existenciais indecifráveis e irrealizáveis.
Como Nelson Rodrigues, Bertrand Morane era um doente, mas
faz falta. O Bertrand que nos habita, asfixiado pelo torpe
moralismo gerenciado pelos carrascos da liberdade comezinha,
caiu em desuso no crepúsculo do século 20 quando o lema “é
permitido proibir” ganhou as calçadas, avenidas, viadutos,
lojas de calcinhas e sutiãs, bordéis.
O auto batizado “garanhão” de Bertrand, na verdade um
paquerador radical, inconsequente e (repito) sofredor até a
medula hoje é rotulado de “assediador” “impertinente”,
“pervertido”, “tarado”, digno de ser “retirado do meio
social em nome da moral e dos bons costumes”.
Da mesma forma que não existem mais Truffauts e cada vez
mais assistimos a cinema com cê cedilha, “O Homem que Amava
as Mulheres” poderia ser exibido em escolas para mostrar a
face oculta da opressão e, de lambuja, que Sigmund Freud até
teve razão quando falou da projeção feminina esculpida pela
figura da mãe. A mãe de Bertrand era puta profissional e
quando ele era adolescente a via desfilando de calcinha e
sutiã pela casa, causando uma dor atroz. Mais: ele abriu
suas gavetas e leu sua troca de correspondências com os
machos, dezenas deles, e sempre o mandava levar cartas (para
eles) ao correio. Bertrand jogava fora.
Minha faculdade exibiu o filme em 1978, em pleno pátio, para
quem quisesse assistir. Me disseram que lotou, mas eu não
estava lá. Se a TV Brasil (estatal) fosse do Estado e não do
PT passaria esse filme em horário nobre, mas não é da índole
governante atual estimular o que agrega e sim o que racha,
divide, mutila. Povo mutilado perde força e poder e, assim,
o governo rouba mais à vontade.
Não sei onde encontrar “O Homem que Amava as Mulheres”, mas
vale a pena correr atrás via Google, Bing e similares porque
é preciso deixar claro para todo mundo que houve, sim, uma
era onde a vida era mostrada, exibida, arreganhada sem
pudores, censores, réguas, compassos, não-libidinagem
explícita.