Não é. Foi-se o tempo em que terapia, para os menos
abastados, era “um tanque cheio de roupa para lavar”. O
mundo inteiro já sabe que a população, como um todo, sofre
os mesmos problemas emocionais, até porque somos humanos e,
no que se refere aos sentimentos, a divisão em classes
sociais não muda muita coisa.
É claro que quanto menor a renda maior a insegurança, mas as
impressões trazidas da infância e adolescência permanecem e,
muitas vezes, precisam ser reprocessadas, assim como os
transtornos de ansiedade e estresses pós-traumáticos.
Recentemente o jornalista Ricardo Boechat veio a público
compartilhar seu momento doloroso de depressão, e exortar as
pessoas a perderem o preconceito e tratarem a anomalia como
uma doença, não como um “fricote” de gente que não tem o que
fazer. A reação popular foi impressionante: centenas de
pessoas de todo o país, e do exterior, declararam sua
identificação com o processo pelo qual o âncora vem
passando, pessoas essas de todas as faixas de renda. Valeu,
Boechat, mais um ponto pra você, precisamos exorcizar este
fantasma.
Minha terapeuta outro dia gastou um tempo de nossa sessão,
por insistência minha, é claro, discorrendo sobre a
experiência de uma equipe de psicólogos que atenderam as
comunidades do Morro do Bumba e de Nova Friburgo, ambas
assoladas por enchentes que destruíram suas vidas, em 2010 e
2011 respectivamente. Ela fez parte do grupo que fechou seus
consultórios durante dois meses exclusivamente para ajudar
essas populações a se recuperarem do estresse pós-traumático
a que foram submetidas, e reunirem condições para recomeçar,
do nada. Gente que perdeu parentes, famílias inteiras. Gente
que não conseguiu salvar nem os documentos. Gente que ficou
com a roupa do corpo. Gente jovem, idosos, crianças. Gente
que perdeu, literalmente, tudo.
A técnica utilizada é a chamada EMDR (Eyes Movement
Depression Reprocessing), desenvolvida pela médica Francine
Shapiro, no final da década de 1980, na Califórnia. Através
da estimulação bilateral dos hemisférios cerebrais, o
paciente é levado a reprocessar sua experiência traumática.
Os estímulos podem ser visuais, táteis ou auditivos e
cooperam para que o paciente reelabore o acontecimento,
observando métodos e aprendendo a controlar suas reações.
Os resultados da aplicação da EMDR nos moradores do Morro do
Bumba, e dos atingidos pelas enchentes de Nova Friburgo em
2011, foram surpreendentes. Não que as pessoas tenham saído
pulando de alegria, claro, mas recuperaram grande parte de
sua força, coragem e autoestima para arregaçarem as mangas e
retomarem seus caminhos.
Conversei também com uma profissional que atua como
voluntária em uma igreja do Ingá, atendendo moradores do
morro do Palácio. Ela me contou que, embora eles convivam
com perigos iminentes e instabilidade financeira maior,
possuem demandas idênticas a de qualquer mortal: perda de
parentes, separações, divórcios, problemas de relacionamento
familiar, alcoolismo ou outras adições químicas, problemas
sexuais. Ou seja, transtornos, medos, depressão, fobias e
ansiedade são comuns a todos e, em sua maioria, a tônica dos
tratamentos.
É preciso encarar as doenças psicossomáticas como
enfermidades advindas de experiências desagradáveis ao
indivíduo, e tratá-las como as demais alterações negativas à
saúde. Chega de fazer “vista grossa”, ou colocar “panos
quentes” em cima de questões graves da mente. O cérebro
processa os acontecimentos da vida de um ser humano de
diversas formas, e muitas vezes essa elaboração não é
adequadamente sistematizada, gerando sintomas físicos
decorrentes de traumas e estresse. Pontão para esses
psicólogos que trabalharam com as comunidades vitimadas por
tragédias naturais. Mega louvável a iniciativa de
universidades e entidades filantrópicas no sentido de ajudar
voluntariamente os que não possuem recursos para tratar suas
emoções.
Em meio à crise política e econômica pela qual passamos, é
uma utopia cobrar dos governos a aplicação de recursos em
terapias para as perturbações emotivas deste país. Enquanto
esperarmos do andar de cima providências para tudo, boa
parte do que pode ser resolvido por nós mesmos fica sem
solução. Por isso devemos nos mobilizar para auxiliar os
menos afortunados. Porque os distúrbios da psique não são
prerrogativa dos que moram “no asfalto”. Eles atingem a
todos, indiscriminadamente, e todos têm direito a serem
tratados. Afinal, depressão e outras desordens emocionais
são, diríamos, democráticas, não escolhem sexo, idade, cor
ou classe social.