Singrando o asfalto tórrido desse verão, outras pessoas com
rostos de cera, olhar perdido em algum lugar do futuro,
fingem ignorar o nó na garganta. O verão é honesto. Torra.
Torra, esfola. Pega, mata e come como um carcará indomado,
ave extinta do nordeste, também extinto.
O calor espelha o sequestro da liberdade presumida. Ou
virtual. Ou prometida. Liberdade que poderia serrar as
correntes que submetem a satisfações, explicações,
justificativas, proíbem de não ir, não vir, nada fazer. O
verão que encharca nossas roupas diz que “liberdade, ainda
que à tardinha” é frase tola, fútil, vazia. A liberdade mora
na senzala social, onde nada é permitido sem autorização.
Liberdade condicionada pelo “bom tom”.
O verão não entende o desmatamento. O sol das bancas de
revistas vomita chamas pelo país, tomado por cachoeiras
secas, mares banhados de latas de cerveja, florestas de pé
de couve, vacas, cavalos, carneiros. E as pessoas vagam
pelas ruas reclamando, reclamando, reclamando. Reclamando do
dia em que nasceram, reclamando da infância, reclamando da
adolescência, reclamando da maturidade, reclamando da meia
idade, reclamando da velhice, reclamando da morte. Reclamam.
Nada fazem.
Vontade, há, de sair quebrando tudo, incendiando prédios
estatais, celebrando a orgia corrupta como atores de uma
guerra civil libertadora. Mas o medo impede. O medo e a
eduçação, que adestraram capachos, bovinos castrados
submissos que caminham para o abate como se nada estivesse
acontecendo.
O calor é honesto. Implacável e honesto. Quem reclama não
tem coragem de incendiar o governo, responsável pelo estupro
na conta de luz que limita o uso de ventilador. Resta o
abano com um jornal velho, cheio de notícias velhas sobre
roubalheiras que se repetem hoje, amanhã, sempre. É
incorreto tacar fogo em tudo e trazer o país de volta.
Singrando ruas, avenidas, praças imundas, nem urubus há. Até
os urubus parecem ter desistido, mas eu não. Olho minha
imagem na vitrine de uma loja fechada pela recessão. Olho
minha imagem e pergunto “um homem ou um rato?”. A coragem
responde um homem, o arrego diz um rato.