As notícias do
último domingo me levaram a uma manchete curiosa, embora
nada surpreendente: Marcela Temer foi eleita pela imprensa
americana a primeira-dama mais bonita do mundo! Bem, pode
até ser justo, embora a Michele Obama, pra mim, seja
maravilhosa. Mas o pensamento que me veio foi “ahhh, quem
dera o Brasil tivesse a cara da Marcela! Quem dera todo o
povo brasileiro fosse bonito como a nossa atual
primeira-dama, e suas casas, lindas como a dela, com
jardins, luz, água encanada, saneamento adequado. Quem dera
não houvesse ruas com o esgoto correndo a céu aberto, e os
filhos de nossa nação fossem todos cheios de dentes
branquinhos, saúde e educação, como graças a Deus tem o
filho dela.”
Quem dera, gente,
não precisássemos chamar os pobres de “eles”, pudéssemos ser
todos um só povo. Pois essa história de classe média não
engana o Brasil, para a população carente somos todos
riquíssimos. Porque o padrão deles se chama dignidade, e nós
aqui, no meio ou no topo da pirâmide, estamos cheios dela,
enquanto eles não possuem (quase) nada. A necessidade é o
que têm direito, e a loucura, e a violência fecundada no
ventre de mais uma grávida em seus 15 anos de vida.
Para quem quer
saber melhor do que lendo notícias ou livros de cientistas
sociais, eu os convido a irem conferir in loco. Dia desses
unam-se a uma ONG, ou a uma igreja, ou a uma instituição
qualquer dessas que não fogem à luta, e subam o morro com
eles para ver de perto o que é, e como é que (sobre)vive o
chamado “povo.” Eu fiz isso sábado passado, e digo, é tapa
na cara o tempo todo. Não estou me vangloriando de nada,
simplesmente conscientizando-me de que a sociedade tem de se
mover, e não apenas contar com o desgoverno que nós temos,
mas arregaçar as mangas e subir a ladeira da escória humana
brasileira, onde tudo é somente no tijolo e no cimento, onde
os cães padecem nas vielas com feridas abertas e os bebês
passam de mão em mão a ponto de nós nem sabermos quem é a
mãe, o pai, os avós.
É difícil, sim. É
triste, muito. Tem que ter certa coragem, tem que se
esvaziar de si mesmo sim. E não me venham com críticas à
Igreja, seja ela qual for, evangélica ou católica, pois é
ela quem sobe, é ela quem vai levar uma palavra de esperança
a essa gente que fede e bebe, e fuma, e come cachorro-quente
cheio dos piores recheios, para não morrer de fome vale
qualquer coisa. É a Igreja que se desprende, que se desapega
de seus “dízimos”, como implicam os ateus, e os transfere
para atendimentos sociais, leva dentistas, médicos,
ginecologistas, veterinários, advogados, jornalistas, gente
afortunada que pôde estudar, para atender de graça gente
desafortunada em manhãs de sábado ensolarado.
Perdi-me em meio
aos emaranhados de fios elétricos que se estapeiam nos
postes mijados, engoli o nojo de bêbados tentando articular
uma palavra na trôpega tentativa de não se estatelarem nos
buracos dos becos, vestidos em andrajos e esbofeteando a
minha honra.
Não, não é longe,
gente, é aqui mesmo, basta andar alguns metros e subir uma
ladeira íngreme que nos faz pensar “aonde vai dar de tanto
concreto e nenhuma árvore?” E no meio do caminho você
esbarra em grupinhos de meninos que esconderam suas armas
porque sabiam que a gente ia passar, mas são eles mesmos os
que nos atemorizam tanto quando descem e nos vêm atentar nas
calçadas e ruas planas que chamamos de nossas.
Surpresa: os
jovens são lindos! Meninos e meninas, mesmo sem muito banho,
sem cabelos tratados, com roupas ganhas aqui e ali, alguns
penosamente sem dentes, são lindos! Agressivos e
desconfiados, é verdade, mas quando lhes arrancamos sorrisos
nos deparamos com um brilho nos olhos que não se esperava
pudessem ainda ter. As crianças são safas desde pequeninas,
a resiliência começa cedo. Os velhos se escondem em suas
casas minúsculas, e os adultos, tirando os que não têm mais
jeito, de tão doentes, e loucos, e parecendo leprosos de
tantas injúrias pelo corpo, consertam seus velhíssimos
carros que não querem “pegar” e se encharcam de cerveja
comprada a R$1,00 no aniversário do Guanabara para esquecer
o drama da vida. Mães e avós tentam cercar seus filhos e
netos de alguma forma. São, efetivamente, elas que sustentam
a vida naquele fétido lugar.
Não é fácil,
pessoal, não é nada fácil. E eu preciso escrever antes que
me esqueça de cada passo dado em direção àquele cenário de
guerra, ainda que fria, de esconderijo do fim do mundo e do
amanhã em que todos nós, sobreviventes à catástrofe
anunciada, estaremos tentando nos resgatar. Quem leu “Ensaio
sobre a cegueira”? É igual, ou um pouco menos pior, ou mesmo
pior. Eu não posso esquecer, não quero esquecer jamais,
quero é voltar lá mais e mais.
Como o cactus,
que insiste em brotar em meio à terra seca, assim é a
sobrevida em uma “comunidade” (maquiagem ortográfica para
aliviar um pouco a culpa da sociedade em relação aos
carentes), para os politicamente corretos, “favela” para
quem mora e frequenta. Onde só a Igreja, e algumas ONGs,
aparecem – de vez em quando. Onde somente a polícia
comparece porque nós aqui embaixo achamos que já fazemos
muito pagando nossos impostos e exigimos a matança de todos
sem julgamento. Lugar que os políticos se lembram de quatro
em quatro anos (honestos eles o são, dizem alguns, “por mais
ladrões que sejam”), quando tapam suas narinas brancas da
cocaína que compram com aqueles mesmos meninos, e sobem para
angariar mais alguma corte dos permanentes flagelados, de
algum modo ainda iludidos. Exatamente como a iuca, que
floresce na aridez do solo tentando viver no deserto hostil.
E então, Marcela,
já que você é agora Embaixadora do Programa Criança Feliz,
do Ministério do Desenvolvimento Social do seu marido, eu
ouso sugerir que você vá até onde moram milhares de crianças
extremamente carentes de nosso país. Nem precisa viajar, aí
mesmo, nos arredores do palácio onde você mora agora, deve
haver centenas delas. Mas a minha proposta é que você não
convide meia dúzia delas para representar as outras aí no
palácio, mas vá até elas, veja de perto o lugar onde elas
moram, a água que bebem, a comida que comem, como crescem.
Porque, de uma forma ou de outra, elas crescem. E quem sabe
você não pode melhorar a vida de algumas delas? Quem sabe
uma meia dúzia delas não poderá se tornar tão bonita quanto
você quando estiverem adultas? Você pode contribuir,
primeira-dama, essa é a sua oportunidade. Eu, se tivesse a
sua chance agora, não a perderia.
A tarde deste
domingo está cheia de nuvens no céu, e eu recordo cada
momento do sábado que passei lá em cima, onde chegam o
lixeiro e o gás, é verdade, mas já não chega o Correio,
corroído pelo medo, nem muito menos os políticos, estes só
de quatro em quatro anos, quando sobem. Lá onde a esperança
ainda não morreu, porque Deus existe e lhes promete a
Glória. Onde missionários vão levar a fé e a esperança, e
profissionais conscientes de que nada vai melhorar enquanto
todos os daqui de baixo não se mexerem, se atrevem a subir e
oferecer um pouco da fortuna com que foram contemplados para
uma educação e saúde melhor para eles. Venham, empresários,
estamos todos esperando pela contribuição de vocês!
E a gente sorri
porque o céu vai ficar azul amanhã e o sol vai brilhar. Mas
chora também porque o ronco das motos, as únicas que sobem
direto, sem parar pra respirar, vai continuar a assustar as
crianças e os animais por um longo tempo. É duro, sim,
Marcela, nosso berço é de ouro, o deles é de cal e pó. E nós
não somos melhores. E nós não somos ninguém.
Eles somos nós.
Nós somos eles. Todos temos de ser um só povo. Vivamos, e
lutemos, para isso acontecer um dia!