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Marcela e a cara do Brasil

     

Publicado em 29/10/2016

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As notícias do último domingo me levaram a uma manchete curiosa, embora nada surpreendente: Marcela Temer foi eleita pela imprensa americana a primeira-dama mais bonita do mundo! Bem, pode até ser justo, embora a Michele Obama, pra mim, seja maravilhosa. Mas o pensamento que me veio foi “ahhh, quem dera o Brasil tivesse a cara da Marcela! Quem dera todo o povo brasileiro fosse bonito como a nossa atual primeira-dama, e suas casas, lindas como a dela, com jardins, luz, água encanada, saneamento adequado. Quem dera não houvesse ruas com o esgoto correndo a céu aberto, e os filhos de nossa nação fossem todos cheios de dentes branquinhos, saúde e educação, como graças a Deus tem o filho dela.”

Quem dera, gente, não precisássemos chamar os pobres de “eles”, pudéssemos ser todos um só povo. Pois essa história de classe média não engana o Brasil, para a população carente somos todos riquíssimos. Porque o padrão deles se chama dignidade, e nós aqui, no meio ou no topo da pirâmide, estamos cheios dela, enquanto eles não possuem (quase) nada. A necessidade é o que têm direito, e a loucura, e a violência fecundada no ventre de mais uma grávida em seus 15 anos de vida.

Para quem quer saber melhor do que lendo notícias ou livros de cientistas sociais, eu os convido a irem conferir in loco. Dia desses unam-se a uma ONG, ou a uma igreja, ou a uma instituição qualquer dessas que não fogem à luta, e subam o morro com eles para ver de perto o que é, e como é que (sobre)vive o chamado “povo.” Eu fiz isso sábado passado, e digo, é tapa na cara o tempo todo. Não estou me vangloriando de nada, simplesmente conscientizando-me de que a sociedade tem de se mover, e não apenas contar com o desgoverno que nós temos, mas arregaçar as mangas e subir a ladeira da escória humana brasileira, onde tudo é somente no tijolo e no cimento, onde os cães padecem nas vielas com feridas abertas e os bebês passam de mão em mão a ponto de nós nem sabermos quem é a mãe, o pai, os avós.

É difícil, sim. É triste, muito. Tem que ter certa coragem, tem que se esvaziar de si mesmo sim. E não me venham com críticas à Igreja, seja ela qual for, evangélica ou católica, pois é ela quem sobe, é ela quem vai levar uma palavra de esperança a essa gente que fede e bebe, e fuma, e come cachorro-quente cheio dos piores recheios, para não morrer de fome vale qualquer coisa. É a Igreja que se desprende, que se desapega de seus “dízimos”, como implicam os ateus, e os transfere para atendimentos sociais, leva dentistas, médicos, ginecologistas, veterinários, advogados, jornalistas, gente afortunada que pôde estudar, para atender de graça gente desafortunada em manhãs de sábado ensolarado.

Perdi-me em meio aos emaranhados de fios elétricos que se estapeiam nos postes mijados, engoli o nojo de bêbados tentando articular uma palavra na trôpega tentativa de não se estatelarem nos buracos dos becos, vestidos em andrajos e esbofeteando a minha honra.

Não, não é longe, gente, é aqui mesmo, basta andar alguns metros e subir uma ladeira íngreme que nos faz pensar “aonde vai dar de tanto concreto e nenhuma árvore?” E no meio do caminho você esbarra em grupinhos de meninos que esconderam suas armas porque sabiam que a gente ia passar, mas são eles mesmos os que nos atemorizam tanto quando descem e nos vêm atentar nas calçadas e ruas planas que chamamos de nossas.

Surpresa: os jovens são lindos! Meninos e meninas, mesmo sem muito banho, sem cabelos tratados, com roupas ganhas aqui e ali, alguns penosamente sem dentes, são lindos! Agressivos e desconfiados, é verdade, mas quando lhes arrancamos sorrisos nos deparamos com um brilho nos olhos que não se esperava pudessem ainda ter. As crianças são safas desde pequeninas, a resiliência começa cedo. Os velhos se escondem em suas casas minúsculas, e os adultos, tirando os que não têm mais jeito, de tão doentes, e loucos, e parecendo leprosos de tantas injúrias pelo corpo, consertam seus velhíssimos carros que não querem “pegar” e se encharcam de cerveja comprada a R$1,00 no aniversário do Guanabara para esquecer o drama da vida. Mães e avós tentam cercar seus filhos e netos de alguma forma. São, efetivamente, elas que sustentam a vida naquele fétido lugar.

Não é fácil, pessoal, não é nada fácil. E eu preciso escrever antes que me esqueça de cada passo dado em direção àquele cenário de guerra, ainda que fria, de esconderijo do fim do mundo e do amanhã em que todos nós, sobreviventes à catástrofe anunciada, estaremos tentando nos resgatar. Quem leu “Ensaio sobre a cegueira”? É igual, ou um pouco menos pior, ou mesmo pior. Eu não posso esquecer, não quero esquecer jamais, quero é voltar lá mais e mais.

Como o cactus, que insiste em brotar em meio à terra seca, assim é a sobrevida em uma “comunidade” (maquiagem ortográfica para aliviar um pouco a culpa da sociedade em relação aos carentes), para os politicamente corretos, “favela” para quem mora e frequenta. Onde só a Igreja, e algumas ONGs, aparecem – de vez em quando. Onde somente a polícia comparece porque nós aqui embaixo achamos que já fazemos muito pagando nossos impostos e exigimos a matança de todos sem julgamento. Lugar que os políticos se lembram de quatro em quatro anos (honestos eles o são, dizem alguns, “por mais ladrões que sejam”), quando tapam suas narinas brancas da cocaína que compram com aqueles mesmos meninos, e sobem para angariar mais alguma corte dos permanentes flagelados, de algum modo ainda iludidos. Exatamente como a iuca, que floresce na aridez do solo tentando viver no deserto hostil.

E então, Marcela, já que você é agora Embaixadora do Programa Criança Feliz, do Ministério do Desenvolvimento Social do seu marido, eu ouso sugerir que você vá até onde moram milhares de crianças extremamente carentes de nosso país. Nem precisa viajar, aí mesmo, nos arredores do palácio onde você mora agora, deve haver centenas delas. Mas a minha proposta é que você não convide meia dúzia delas para representar as outras aí no palácio, mas vá até elas, veja de perto o lugar onde elas moram, a água que bebem, a comida que comem, como crescem. Porque, de uma forma ou de outra, elas crescem. E quem sabe você não pode melhorar a vida de algumas delas? Quem sabe uma meia dúzia delas não poderá se tornar tão bonita quanto você quando estiverem adultas? Você pode contribuir, primeira-dama, essa é a sua oportunidade. Eu, se tivesse a sua chance agora, não a perderia.

A tarde deste domingo está cheia de nuvens no céu, e eu recordo cada momento do sábado que passei lá em cima, onde chegam o lixeiro e o gás, é verdade, mas já não chega o Correio, corroído pelo medo, nem muito menos os políticos, estes só de quatro em quatro anos, quando sobem. Lá onde a esperança ainda não morreu, porque Deus existe e lhes promete a Glória. Onde missionários vão levar a fé e a esperança, e profissionais conscientes de que nada vai melhorar enquanto todos os daqui de baixo não se mexerem, se atrevem a subir e oferecer um pouco da fortuna com que foram contemplados para uma educação e saúde melhor para eles. Venham, empresários, estamos todos esperando pela contribuição de vocês!

E a gente sorri porque o céu vai ficar azul amanhã e o sol vai brilhar. Mas chora também porque o ronco das motos, as únicas que sobem direto, sem parar pra respirar, vai continuar a assustar as crianças e os animais por um longo tempo. É duro, sim, Marcela, nosso berço é de ouro, o deles é de cal e pó. E nós não somos melhores. E nós não somos ninguém.

Eles somos nós. Nós somos eles. Todos temos de ser um só povo. Vivamos, e lutemos, para isso acontecer um dia!


 
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